
“Foi um choque o dia que minha filha me mostrou uma foto dela sem roupa que estava circulando em grupos de conversas. Eu não imaginava que pessoas que conviviam com ela desde pequena poderiam fazer uma coisa desse tipo.”
O relato é de Fernanda (nome fictício), mãe de uma adolescente de 15 anos, que teve fotos retiradas de sua rede social, alteradas e transformadas em nudes com uso de inteligência artificial (IA).
A imagem, que mostra a adolescente com os seios expostos, circulou em um grupo de conversa de meninos que estudavam na mesma sala de aula, em um colégio particular do Rio de Janeiro, no ano passado. Após a descoberta, a família trocou a adolescente de escola.
A prática de criar deep nudes ou nudes falsos, expondo mulheres na internet sem autorização delas, tem se tornado cada vez mais comum.
Casos envolvendo alunos que alteraram e divulgaram fotos de colegas de sala e até mesmo de professoras já foram registrados em São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e Mato Grosso.
- ENTENDA: o que são deep nudes
Divulgar imagens manipuladas é crime
O Código Penal, em seu artigo 216-B, criminaliza o ato de produzir e divulgar montagens e imagens manipuladas para terem cunho sexual. A pena pode variar de seis meses a um ano de prisão, além de multa.
Se as imagens envolvem menores de 18 anos, há também a punição prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente para quem “simular a participação de menores de idade em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual”.
A pena varia, nesses casos, entre um e três anos de prisão, além de multa. Ela é aplicada a quem comercializa, distribui ou divulga esse tipo de imagem por qualquer meio.
“Mesmo que a pessoa afirme que não sabia que a imagem era falsa ou que estava apenas repassando o conteúdo, a lei entende que o simples ato de divulgar material íntimo não autorizado já configura crime”, explica Fábio Diniz, presidente do Instituto Nacional de Combate ao Cibercrime.
“A divulgação de imagens íntimas, reais ou não, sem o consentimento da vítima, fere diretamente a sua dignidade, podendo gerar processo judicial”, acrescenta.
Congresso discute leis para endurecer penas
O Projeto de Lei 3.821/24 foi aprovado na Câmara dos Deputados em fevereiro e busca aumentar a pena para quem manipula, produz ou divulga conteúdo de nudez ou ato sexual falso gerado por inteligência artificial ou por outros meios tecnológicos.
O texto precisa ainda ser votado pelo Senado. Se o projeto for aprovado e virar lei, o crime pode ser punido com prisão de dois a seis anos e multa.
A mudança prevê um aumento da pena se a vítima for mulher, criança, adolescente, pessoa idosa ou com deficiência e em casos de disseminação em massa em redes sociais ou plataformas digitais do conteúdo manipulado.
Já o Projeto de Lei 370/2024 inclui o uso de inteligência artificial ou de qualquer outra tecnologia que altere imagem ou voz da vítima como agravante, o que possibilita o aumento da pena no crime de violência psicológica contra a mulher.
Essa proposta foi aprovada no Congresso e agora aguarda a sanção do presidente para se tornar lei.
“A própria legislação, aos poucos, tenta se adaptar a esses novos contextos. Agora, mais do que deixar as leis mais duras, é importante conseguirmos ter maior aplicabilidade da lei e a apuração rápida desses crimes. Porque muitas vezes é difícil localizar o infrator, e consequentemente, aplicar a punição”, analisa Lucas Uster, advogado especializado em direito digital.
Para Arthur Igreja, especialista em tecnologia e inovação, corresponsabilizar as plataformas pode ser um caminho para que haja uma maior fiscalização na criação desse tipo de conteúdo, além do endurecimento das penas.
Traumas, chantagem e extorsão
No caso da adolescente de 15 anos do Rio de Janeiro, a mãe relata diz que a menina descobriu que a foto fake havia sido divulgada no grupo de alunos após uma amiga dela ver a imagem.
“Minha filha chorou muito e não queria mais voltar para a escola. Além da vergonha, tem a questão de que a foto havia sido alterada, supostamente, por alguns colegas”, conta a mãe.
Para superar o trauma, a menina faz acompanhamento psicológico. Além disso, ela passou a evitar postar fotos em suas redes sociais.
“Como toda adolescente dessa idade, ela gostava de fazer dancinhas e postar fotos. Mas ela ficou com muito medo do que podem fazer com as fotos dela. Hoje, quando ela posta é apenas stories, que desaparecem após um dia”, detalha a mãe.
Situação semelhante enfrentou Rafaela Ferrari Kley, mestre em direito internacional público e especialista em criptomoedas. Ela teve uma foto sua alterada com o uso de inteligência artificial, e criminosos tentaram extorqui-la.
“Eu recebi uma mensagem na minha rede social e ao abrir vi que a pessoa me pedia bitcoins para não divulgar uma foto minha nua. A imagem havia sido roubada do meu perfil e alterada”, conta.
Rafaela relata que não cedeu à chantagem e não fez o pagamento exigido.
“Apesar da exposição, a foto tinha algumas imperfeições que mostravam que era manipulada. Por isso, decidi que não faria o pagamento e alertei os meus seguidores sobre o que estava acontecendo”, acrescenta.
Como denunciar
Para denunciar esse tipo de crime, o primeiro passo é reunir e preservar todas as evidências possíveis: capturas de tela, links de sites ou redes sociais onde a imagem foi publicada, mensagens de terceiros que tenham recebido ou compartilhado o conteúdo, por exemplo.
Após reunir as provas, é importante denunciar imediatamente o conteúdo por meio dos canais oficiais da plataforma onde ele foi publicado. Quanto mais rápida a denúncia for feita, maior a chance de interromper a disseminação e minimizar os danos causados.
Em seguida, deve ser registrado um boletim de ocorrência, de preferência em delegacias especializadas em crimes cibernéticos para a investigação criminal. Se na cidade não houver uma delegacia especializada, essa ocorrência pode ser feita em qualquer delegacia
Por Deutsche Welle – G1